"É preciso falar deste assunto e não escondê-lo para debaixo do tapete", diz procuradora do Estado
Artigo:
THE LEFTOVERS*
Por
Glaucia Amaral
O suicídio é uma epidemia, relativamente silenciosa. A OMS
informa que mata mais do que o HIV, e em estudo inédito nos revela que há um
suicídio no mundo a cada 40 segundos. Não sou especialista na área apesar de me
aventurar a escrever este artigo. Médicos psiquiatras, psicólogos, neurologistas
e até nutrólogos são os profissionais mais habilitados a informar com precisão
técnica o que a ciência já sabe deste flagelo dos dias atuais.
O que tenho é a experiência de ter testemunhado isso
ocorrer. Creio que, com esses índices,
parando para pensar, todos conhecem casos de pessoas próximas que cometeram
suicídio. E do que vivi e aprendi, é que peço licença para compartilhar. Quem
sabe compartilhar a experiência de quem restou, possa ajudar. E, mesmo,
compartilho, pois é preciso falar deste assunto e não escondê-lo para debaixo
do tapete. Está acontecendo, muito perto de todos nós.
Da primeira vez que um suicídio aconteceu com alguém próximo,
foi com um familiar. Um primo, num ato que pareceu a uma criança (que eu era)
um desatino. Ciúme e até estar submetido a pressão da sociedade machista o
levaram ao extremo, imediatamente após um divórcio. Tantos anos atrás, meus
tios fizeram de tudo para que os
detalhes não ganhassem os jornais.
Na segunda vez, e bastante recentemente, vi minha melhor amiga
de uma vida inteira ser consumida pela depressão. Família, amigos, igreja – ela
era uma pessoa de muita fé – mas nada a atingia o suficiente, para fazer voltar
a crer na vida. Uma irmã, das brincadeiras e aprendizados da infância,
adolescência e faculdade, começa a definhar diante dos olhos e nada do que a
medicina tem para oferecer sequer chega a dar esperança de mudança de rota. Fiz
promessas de estar perto. Vi os olhos brilharem durante conversas reacendendo a
alegria que já estivera presente. E, fundamentalmente, nunca acreditei – por
ser impossível acreditar que alguém tão essencial um dia se vá – que o pior
fosse acontecer. Aconteceu.
Um ano depois, vi novamente. Tudo que li e pesquisei para
ajudar minha melhor amiga, foi o substrato que me ajudou a enxergar que mais
alguém tão querido trilhava este caminho. O sinal de alerta acendeu ao ouvir
frases desejando estar livre do que existia na própria vida. A confissão
entrecortada e negada imediatamente, dizendo que morrer lhe passava pela
cabeça. A mudança dos gestos, a construção de uma versão da realidade na qual a
única conclusão possível seria que sua ausência era o melhor para os que amava.
E o fim.
A tristeza de perder amigos amados, como naquela poesia que
tanto circula, muda a gente. O título do artigo, “The Leftovers”, é de uma
série de TV americana, de realismo fantástico que propõe uma realidade
paralela: em um determinado dia, na mesma hora, milhões de pessoas desaparecem
da face da terra. Sem explicação. Não é sequestro, não é morte, não há corpos,
nada. Somem diante dos olhos. A série mostra a vida daqueles que ficaram, e
suas tentativas de descobrir o que de fato ocorreu e sobreviver à tristeza.
“Leftovers” é também, a forma como se referem à comida que sobrou. As sobras.
O enredo da série é um pouco do sentimento que fica, quando
um ente querido se vai após perder a batalha contra um flagelo mental. Não sou
capaz de compreender a perda da vontade de viver. Nos três casos que sofri, o
coração partido só se recorda que eram três pessoas incapazes de fazer o mal
e alegres. Meu primo gostava de praticar
esportes e dançar tango, minha melhor amiga tinha a gargalhada mais alegre de
todas, e sempre presente. E minha querida amiga que faleceu ano passado, passava
a vida a agregar grupos, fazer amigos tornarem-se amigos uns dos outros.
Pessoas amadas pelas famílias.
Outra coisa que o mundo moderno trouxe, é o senso comum
invadindo o momento de luto, com tantas opiniões nos jornais e redes sociais.
Desconhecidos apontando o dedo, após a morte e falando em falta de amor, ou
falta de Deus. Comentários que só posso concluir que nasçam da ignorância, de
não ter o conhecimento técnico (dos médicos e psicólogos) e nem o conhecimento
trazido pela vida àqueles que já tentaram auxiliar uma pessoa nessas condições.
Nos três casos que presenciei, a busca - e paz - que sentiam cada um com sua fé
religiosa, por si só não resolveu. Mas também não era apagado, como muitos
acreditam, no conforto de seus sofás.
Uma doença física é melhor percebida pelo doente, pela
família, por quem está em volta. O luto após um suicídio é uma dor com
características diferentes. Resta uma grande pergunta não respondida, naqueles
que ficam. E a preocupação não cessa. Anos depois, ainda me pego na lembrança
dos momentos felizes, e dos momentos de dor. E pensando no que poderia ter sido
feito.
O que posso dizer, para todos, pois não sabemos quem pode
passar por isso, é que teria multiplicado a atenção por dez, cem, mil vezes. É
preciso estar atento e esquecer o senso-comum. Ao perceber amigos doentes, meu
primeiro passo foi buscar a orientação em artigos e grupos. E falei com
profissionais da área pedindo orientação sobre o que fazer para auxiliar - e
descobri que é sim, possível ajudar. O suicida fala em morrer, há sites de
apoio e campanhas de esclarecimento sobre os elementos comuns na forma como se
comportam. A pessoa com esse perfil dá
sinais.
Diante dos sinais, se você está por perto, não pense que é
exagero agir. Aja. Fale. Pode ser que os familiares da pessoa doente sejam
abertos a ouvir. Fale, avise o responsável (pai, mãe, marido, esposa, irmãos).
Há situações em que os familiares não são abertos para ouvir. Procure mesmo
assim, comunique. Comunique ao médico responsável. Ele não convive com a pessoa
24 horas, e só conta com o que ouve na consulta.
Mesmo estando presente, mesmo estando atento, saiba que a
batalha é interna e só pode ser vencida pela própria pessoa. E que todos os
seus esforços serão considerados insuficientes por você mesmo, caso perca
alguém querido. Tente ajudar mesmo assim. Testemunhei o amor que cada uma
dessas pessoas tinha por seus familiares, mesmo no auge da doença. Colocando-me
a disposição, ouvi frases de preocupação com os pais, com os filhos. E
testemunhei o que esta doença faz com o cérebro e a capacidade de raciocínio de
pessoas amorosas: a ilusão de que sua morte é melhor para os que ficam. Um
pensamento fixo que substituiu a realidade.
Depressão é uma doença grave, séria, que não dá tréguas aos
que dela padecem. A quem teve um ente querido perdido, minha solidariedade, a
gente descobre e redescobre o que tem valor na vida. E o valor da própria
vida. Aos que pensam que dar fim à
própria vida pode ser um caminho, um apelo amoroso para que lute contra esse
pensamento equivocado, procure e acredite no poder da ajuda especializada. A
morte não é solução. É um vazio que nunca pode ser preenchido, pela perda da
pessoa única e especial que cada um é.
*Glaucia Amaral é Procuradora do
Estado em Mato Grosso e presidente da Associação dos Procuradores do Estado de
Mato Grosso (Apromat).
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