Pitaco não é fato

* Por Luana Soutos   

No primeiro semestre da faculdade de comunicação, um dos professores fez um exercício muito interessante. Já faz dez anos, mas nunca esqueci. Tínhamos que desenhar uma cena real: objetos geométricos que estavam sobre uma prateleira acima da altura dos nossos olhos. Assim que o professor deu o sinal, os estudantes se empenharam para retratar a imagem no papel da melhor forma possível.

Embora alguns, mais vaidosos, encarassem o exercício como uma competição para obter os melhores desenhos, não era disso que se tratava. Ao final do exercício percebemos que, embora tivéssemos desenhado o mesmo cenário, cada desenho era um, e nenhum se repetia. Isso porque estávamos dispostos em locais diferentes da sala.

Com aquele exercício, o professor também estava desenhando. Ele estava ilustrando uma realidade que teríamos de lidar todos os dias como comunicadores: as pessoas observam os mesmos fatos de diferentes perspectivas e, assim, têm “visões” diferentes.

Parece simples, mas não é. É óbvio que todo mundo tem opinião sobre fatos, impressões sobre as pessoas. Isso é natural e até saudável. O problema é quando perdem a noção de que há outras perspectivas. Esquecem que determinada opinião importa mais em alguns momentos, e menos em outra. Ou pior, pode prejudicar alguns, e beneficiar outros injustamente.  

O caso do desembargador sem máscara que agrediu policiais em São Paulo é um exemplo. Agrediu, mas se disse agredido. Ofendeu, mas disse que foi ofendido. Deu pitaco, chamou de analfabeto, mas quem se mostrou mal educado, de fato, foi ele mesmo. Poderia até ser enquadrado no termo que utilizou para ofender - analfabeto, o analfabeto político desenhado por Brecht (vale a pena ler esse poema para evitar o analfabetismo político).

A fome pode ser outro triste exemplo. Ela existe, infelizmente. O mundo sabe. Em 2019, o relatório da ONU contabilizou 820 milhões de pessoas no mundo sofrendo de “insegurança alimentar”, 150 milhões em sua forma mais radical - fome.  No Brasil, são 5,4 milhões. É inconcebível, considerando o grau de evolução tecnológica que alcançamos, mas a fome existe, está lá, e quanto mais perto, maior o sofrimento. Quem está longe, no entanto, e não tem empatia por ninguém, prefere ignorar. O presidente da República, que inclusive tem responsabilidade sobre o fato, preferiu dar pitaco, e declarou que ninguém passa fome no Brasil, “porque não se vê gente com físico esquelético nas ruas”. Pior, ele disse que falar de fome no Brasil é discurso populista. Isso não é questão de perspectiva, é inventar imagens que não existem para tirar vantagem.  

Mato Grosso também teve um mau exemplo recentemente. O governador disse que os estudos da Universidade Federal sobre a evolução da Covid-19 no estado não têm base científica. Deu pitaco, mas não é fato. E assim ele se sente autorizado a atender aos grandes, reabrindo o comércio num momento em que a pandemia ganha força, enquanto os pequenos morrem buscando atendimento numa saúde pública precarizada pelo seu próprio governo e pelos anteriores.  

Quer saber diferenciar o pitaco do fato? Observe criticamente as palavras e as ações. Parece simples, mas não é, exige prática. A arte e a ciência nos alertam sobre isso o tempo todo, desde “as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”, na bela voz de Elis Regina, até as palavras fortes de Marx: “se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência não seria necessária”. Deve ser por isso que a arte e a ciência são alvos das formas mais radicais de pitacos.      

Estejamos atentos e tenhamos em mente que dar pitaco não faz de determinada perspectiva, um fato.

 *Luana Soutos é jornalista e socióloga

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